Lugar nenhum

RIDÍCULA
Discórdia
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3 min readApr 11, 2020

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Ilustração por Adrian Fernandez

Lugar nenhum

O sol ilumina meu apartamento sem entrar, passa de viés pela janela, deixando apenas dois triângulos de calor que recaem sobre um arquivo no escritório e sobre a porta de um armário, ali pelas duas da tarde. Faz cinco meses que moro neste apartamento e a quarentena nos fez íntimos. Sei onde esperar a luz e em que cantos a poeira gosta de se juntar.

Enquanto trabalho, estendo os pés sobre o triângulo, em busca de alguma migalha de vitamina D. Outra forma de obtê-la é me inclinar na janela, imitando as estátuas de namoradeira: braços cruzados apoiados no batente e um pavor de que meus óculos escorreguem do rosto e caiam para nunca mais.

A janela da sala dá para uma obra que não parou, um prédio povoado por homenzinhos vestidos de azul que continuam a erodir a estrutura com britadeiras. A quarentena não chegou ao alto dos andaimes. A janela do quarto dá para um prédio vazio, janelas novíssimas de alumínio branco sempre fechadas. Há uma piscina de água turva que os mosquitos certamente usam para fins sensuais. Na frente, mora apenas um Rotweiller, que também não foi liberado do seu trabalho de espantar invasores. De cima, vejo os cocôs pontilhando as áreas comuns do prédio, que um dia alguém virá recolher. Inconformado, o cachorro late para os que ousam caminhar na rua.

Aqui em casa somos três: eu, o cachorro e uma pilha de louça persistente, que se recusa a diminuir, porque eu, veja só, como todos os dias mas lavo só em alguns. Eu, que cozinho muito pouco, tenho me acostumado com o sabor da minha própria comida.

O cachorro é minha alforria, graças a ele posso me dar ao luxo de sair pra tomar um vento uma vez ao dia, e ele cheira e mija nas coisas. Enquanto os cachorros puderem mijar nas coisas alguma coisa no mundo ainda estará em ordem. Ontem um homem brigou comigo porque meu cão quis cheirar o dele. Talvez acredite que a distância entre dois humanos deva ser maior do que duas guias. A cada saída avalio a quantidade de gente na rua, alguns usam máscaras, muitos entregadores passam para lá e para cá. Há lojas com as portas de ferro desenroladas pela metade. Na janela de um edifício, alguém colou um papel sulfite com os dizeres voltados para fora: Vai passar. Quase choro.

Outro dia, marquei de ir ao sacolão na frente de casa no mesmo horário que minha mãe, para que pudéssemos nos ver — a 3 metros de distância. Copiei parte de suas compras: bistecas, bananas, pão de queijo, beterraba. Não posso ir mais aos almoços do domingo. Que eu possa ao menos comer as mesmas bananas, compradas na mesma loja, parece ganhar algum tipo de significado.

Meu avô fica feliz de receber ligações, e se gaba quando três dos quatro netos ligam no mesmo dia. Eu também fico feliz de fazer chamadas em vídeo. Semana passada um amigo encontrou uma pasta com fotos das nossas festas na época da faculdade. Rimos e olhamos para as pessoas que éramos com 10 anos de distância e acho que gostamos do que vimos. Lemos também as poesias que escrevíamos bêbados nessa época. Uma delas fala sobre um faraó que enterrou um órgão em cada tupperware. Em outra, alguém afirma pensar com dois cérebros. Naquele momento a distância era nenhuma.

Em breve, vou adotar uma cachorrinha e então seremos 4 contra a solidão, eu, dois cachorros e a pilha de louça, que há de subir e descer cadenciadamente até o fim da quarentena, seja quando isso for. Ouço mais música do que costumava, e sem os fones, um luxo dos que estão em casa e moram sozinhos. Rendo pouco, demoro a fazer tarefas que deveriam ser simples. Cansada, queria dormir várias vezes ao dia ou acordar lá pra frente, meses depois. Devia passar o aspirador, terminar uma leitura ou cozinhar algo que me exija mais do que 20 minutos.

Em vez disso, sento e escrevo esse texto que, como eu, não vai a lugar nenhum.

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RIDÍCULA
Discórdia

Nathalie Lourenço, publicitária e ridícula de nascença. Autora dos Livros Morri por Educação e Sabor Idêntico ao Natural. https://linktr.ee/natlourenco